Artigo publicado por Giorgio Cappelli no Garagem Hermética Quadrinhos (reproduzido com permissão do autor):
Aprendi lendo quadrinhos – Cultura útil
Um dos grandes obstáculos que nós, fãs, entusiastas, criadores e profissionais dos quadrinhos temos de enfrentar é o radicalismo dos intelectualoides. Frases como “Quadrinho é subliteratura”, “Quadrinho é coisa de criança”, “Quadrinho é pra divertir, não pra educar” só servem para mostrar a desinformação desse pessoal.
Há várias empresas no Brasil especializadas na produção de cartilhas educativas, em formato de HQ, que falam sobre segurança no trabalho, combate e prevenção à doenças, uso de camisinhas, entre vários outros temas. Até os personagens do Mauricio de Sousa já figuram nesse tipo de mídia. Com sua linguagem fácil e atraente, as histórias em quadrinhos se prestam muito bem ao didatismo. Até mesmo quando não querem!
Podemos aprender muita coisa lendo quadrinhos. Vamos começar por Asterix. Na página introdutória da série há um mapa e um texto explicando que toda a Gália havia sido ocupada pelos romanos no ano de 50 antes de Cristo, exceto uma aldeia que resiste bravamente aos invasores. Acredite: isso não foi invenção do roteirista René Goscinny. Houve uma tribo de gauleses que enfrentou mesmo os soldados de César! O que muita gente pensa que é piada, é na verdade um fato histórico. Para comprovar, segue um trecho de autoria de Cíntia Cristina da Silva, publicado na revista Aventuras na História:
A Gália toda queimou. Toda? Não! Uma tribo seguiu as orientações do líder rebelde só até certo ponto: destruiu mais de 20 vilarejos em um dia, mas se recusou a ceder a capital, Avaricum (ou Bourges). Foi a luta dessa turma de guerreiros irredutíveis que inspirou a criação de Asterix. “Nunca existiu uma aldeia capaz de opor-se por muito tempo à dominação romana. Mas a resistência de Avaricum, mesmo durando apenas 27 dias, tornou-se célebre já naqueles dias”, diz Anne Bellangier, professora da Universidade Laval, em Quebec, no Canadá.
A cidade era fortificada, tinha alimento suficiente para meses e seus cidadãos eram orgulhosos e organizados. Resolveram ficar e enfrentar os invasores. A essa altura, os romanos, além de derrotar os gauleses, precisavam de comida. César ordenou que Avaricum fosse sitiada. Durante quatro semanas, suas paliçadas de madeira resistiram às catapultas romanas. O exército de César erigiu então torres diante dos muros da cidade. Num dia de tempestade, os defensores foram surpreendidos pelas legiões que saltaram a muralha e invadiram a cidade. “Nem velhos, nem mulheres, nem meninos os soldados pouparam”, escreveu César. Dos 40 mil moradores, apenas 800 sobreviveram.
Fonte: Guia do Estudante Abril
Se algum dia alguém vier lhe dizer, com toda a propriedade, que “o Asterix é uma metáfora da França contra o imperialismo ianque”, pode rir na cara dessa pessoa e acabe com ela citando essa história de Avaricum.
E não acaba por aqui. Cada álbum da coleção traz algum ensinamento proveitoso. Assim, em A Odisseia de Asterix, quando Obelix tenta mergulhar no Mar Morto e não afunda, um guia explica o fenômeno:
Em Obelix & Companhia, Asterix recebe, do amigo, aulas de economia. O problema é se fazer entender…
Vemos, portanto, que certas histórias em quadrinhos, além de divertir, podem apresentar vários níveis de leitura, interpretação e até mesmo humor. Algumas até corrigem erros de roteiristas de cinema. Quando, em um filme, o personagem afunda dentro de um barco ou carro, ele abandona o veículo e sobe até a superfície o mais depressa que pode. O álbum Vito Mau Agoiro, da série “Spirou e Fantásio”, publicado pela extinta Meribérica, ilustra o enorme perigo de quem toma essa atitude. Na aventura, Spirou descobre, a 35 metros de profundidade, que seu equipamento de mergulho sofreu sabotagem; pior, precisa subir depressa, já que o amigo Fantásio corre perigo. Enquanto Spirou toma as devidas precauções, o narrador ensina: “Trinta e três metros… expulsar o ar… ao subir, dilata-se… evitar a sobrepressão pulmonar…”
Quando o herói chega à tona, mais ou menos são e salvo, tem de passar pelo estágio mostrado a seguir:
O que me dizem disto, então? A Marvel me ensinou o que não aprendi em nenhuma aula de biologia do colégio: “Vermelha e amarela, esticou a canela! Vermelha e preta, não tem treta!” (Hulk e Wolverine: Seis Horas)
Se alguém acha essas informações muito específicas, condições extremas ou acredita que nunca vai mergulhar na água dentro de um carro nem levar picada de cobra coral, passemos então a uma história do Batman com um ensinamento mais prático. Um vigia de armazém encontrava-se a serviço, quando um gatinho surgiu. O vigia pousou-o sobre as pernas e, sentado, passou a acariciá-lo. Instantes depois, deparou-se com um bandido auto-intitulado “Rei dos Felinos” (Karl Kyle, irmão da Mulher-Gato, então supostamente regenerada). Ao levar as mãos à arma, o vigia sentiu uma descarga elétrica que o deixou desnorteado. Isso bastou para o vilão atacá-lo e derrotá-lo.
O que aconteceu? Explica o bandido: o pelo dos gatos acumula eletricidade estática. Depois de acariciar o felino, o vigia tocou no metal da arma e levou um tremendo choque. Evite, então, encostar a mão numa maçaneta, por exemplo, após brincar com seu felino.
Existem vários outros exemplos – com mangás inclusive – que infelizmente não cabem aqui. O que pretendo mostrar é que formadores de opinião e profissionais das áreas de ensino precisam entender que preconceito não se resume a etnias, religiões, cor de pele, disfunções mentais ou físicas – existe o preconceito de ideias, muito mais sutil e arraigado, cometidos por essas pessoas sempre que classificam os quadrinhos como “cultura inútil”..
Giorgio Cappelli é tradutor e autor. Acredita que a verdadeira cultura inútil não são os quadrinhos, e sim as revistas de celebridades. Além disso, acha depreciativo o termo “gibi” para classificar a arte sequencial.